quinta-feira, 15 de setembro de 2011

CRÔNICA - VOZ DA ÁGUA

Agachei-me num movimento instintivo para aproximar de suas águas e senti pena. O leito está assoreado e cheio de ciscos, de garrafas, pneus e uma infinidade de leviandades que o povo mal educado nele despeja
Já na madrugada quando a insônia se cansou e deu lugar à modorra, o pensamento ganhou asas e voou em busca e na direção do ontem. Para traspassar esses anos que o compõem até chegar ao destino, a velocidade do vôo impediu que eu visse a paisagem e nem o horizonte lá longe, como acontecia quando a gente se sentava à janela de um trem.
Vi-me de hora para outra às margens do ribeirão que me viu crescer, que banhou e me ensinou a nadar; e que de certa forma partilhei de sua juventude até que as obrigações escolares nos separaram sem que tivéssemos tempo ou pensássemos em nos despedir, como fazem os amigos com os rapapés e promessas de despedida. Aconteceu, simplesmente!

Pois nessa volúpia vivenciada no entressono (ou seria entressonho?), o vi de novo. Mas está muito diferente do riacho de outrora. Suas margens cobertas de árvores que abrigavam um sem número de bichos viraram pastagem ressequida e áreas descuidadas de lavoura. Até o trilho que me levava a elas sumiu tragado pelas lâminas de algum trator. Mudança de comportamento do homem.

Nesse encontro quis sorrir, abrir os braços num fraterno pré-abraço para lhe dar um olá do tamanho da minha saudade, afinal, tantos anos se passaram, mas o que vi me conteve.

Agachei-me num movimento instintivo para aproximar de suas águas e senti pena. O leito está assoreado e cheio de ciscos, de garrafas, pneus e uma infinidade de leviandades que o povo mal educado nele despeja.

Tentei encontrar as corredeiras murmurejantes que pareciam cantar entremeadas ligeiras em trança nos pedregulhos, mas vejo somente filetes de água sem vida, de cor cinza-amarronzado em triste de agonia, resultado da sufocação que os entulhos e os detritos impõem.

Olho-me por inteiro no antes e no agora e me comparo a ele. Em mim os traços das rugas, os olhos cansados, as mãos tingidas por pintas, o cansaço natural. Tudo isso mostra que o tempo realmente passou. Porém, respiro. Ainda sinto que a vida está presente e que a experiência dos anos tem o condão de refazer a cada instante a juventude de minha alma: posso continuar a sorrir. Olho com os mesmos olhos o ribeirão e o que vejo? Sua aparência é infinitamente mais velha. Suas águas sujas e malcheirosas repelem, causam nojo. A voz cantante que antes saía de seus rumorejos parece simples sibilar de pedidos de socorro.
Pena que ninguém, quando acordado, a ouça.
                                                                                          Renato Benvindo Frata, advogado em Paranavaí
Fonte: Jornal Folha de Londrina 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

NÃO ACEITAMOS COMENTÁRIOS ANÔNIMOS, FAVOR DEIXE SEU NOME E E-MAIL PARA QUE POSSAMOS RESPONDER.